Existem livrarias que nos ficam na memória. Bem compreenderão que isso para nós, livros, é muito importante. Importantíssimo! Até acentuaria mais, quase a arriscar um erro: importantérrimo!
Uma livraria é a nossa casa. Na verdade, mais do que casa... é o nosso Lar. E que palavra linda esta, escrita com três letrinhas apenas.
Lar, lindo lar era aquele. Logo a receber-nos, a porta antiga desenhada em madeira de carvalho era um convite a entrar. Dlim, dlom, fazia a campainha sempre que alguém por ela passava.
Mas o dlim, dlom não só era o sinal das boas-vindas. Era o toque mágico que anunciava a tão desejada presença… do leitor! Depois, soava um dlim, dlom mais feliz quando o leitor saía levando o livro embrulhado com o sorriso cúmplice do livreiro.
Ah, pode-se lá entrar numa livraria – em qualquer livraria – e não ficar com o interesse entalado entre as páginas de um livro?! Então na minha livraria, por onde tantos curiosos entraram, tantas histórias foram procuradas e encontradas, tantos segredos partilhados.
Aha! Também já estão a ficar curiosos, jovens leitores, bem sinto aqui. Pois vamos lá a ver se consigo soprar o pó da memória que vai tapando estas carreirinhas de letras. Pffff... pfff. Já se lê? Já conseguem ler?
Tempos houve ou terá havido, uma pequena livraria de bairro. Pequena, mas talvez por isso mesmo, muito acolhedora. Situada numa rua comercial de um simpático bairro, as pessoas que por ali passavam admiravam sempre a montra. Linda montra, sim senhor! Grande e soalheira, de vidro bem lavado, que convidava a luz da leitura – e da novidade – a entrar.
Era a menina Nela, sobrinha do livreiro Liácio, quem da montra cuidava. No arrumo dos livros punha o aprumo de um lar. Do nosso lar, já se sabe.
Atravessada a porta - dlim, dlom! - o cheiro a livros recebia o cliente. Confesso que, por vezes, a agitação da livralhada era tanta que o odor dos livros fugia para a rua. “O que procura?”, perguntava amavelmente o senhor Liácio, a quem o original nome traçara o destino.
De facto, desde rapazote Liáciozinho, conforme era por todos conhecido no bairro, revelara uma desnatural curiosidade e interesse por livros. De tal modo assim era que, na escola, lhe chamavam entre recreios e correrias, Liácio, o encantador de livros. Mas bem podia a rapaziada gozar, provocar, fazer troça... Porém, ao invés de se mostrar ofendido, Liácio sorria e sempre respondia com um leve pestanejar: obrigado!
Escusado será dizer que provocação sem arreliação perde a graça e, no final dos estudos já era comum encontrar o Liácio acompanhado por livros... e por colegas que, afinal, lhe pediam sugestões de leitura.
Mas retomemos o que agora mais importa.
Foi dito que no interior da loja encontrávamos livros, muitos livros, uns arrumados e outros desarrumados, a menina Nela e o senhor Liácio. Mas não só.
Na minha livraria também vivia um gato. Um gato felpudo, ronronante e rechonchudo, malhado a preto no branco tal como as páginas de muitos livros. Gato meigo, manso e esperto, exibia uma singular cauda nos movimentos que dengosamente desenhava, ia desenhando, sempre que passeava por entre os livros, por entre as pernas da menina Nela e do senhor Liácio. Era o Maravilhas.
Incerto dia – seria primavera? – entraram dois jovens amigos na minha livraria. Ele, de sardas; ela, de tranças. Tinham reparado no Maravilhas deitado no sol da montra. Queriam verificar se era um gato de miar verdadeiro.
O dlim dlom soou na porta e a menina Nela apressou-se em saber ao que vinham, o que procuravam. As tranças e as sardas sorriram.
- Viemos ver o gato. Como se chama?
- Podemos tocar? Parece ter um pelo tão macio…
O senhor Liácio aproximou-se da conversa:
- Os gatos são excelentes companheiros para os momentos de leitura. A propósito, ó Nela, onde está aquele nosso livro acerca dos gatos?
A menina Nela foi prontamente buscar o escadote dos três degraus. Subiu e desceu. Não encontrou. Deslocou um pouco o escadote. Voltou a subir. E a descer. “Que estranho, não o encontro”, suspirou. O senhor Liácio ajeitou os óculos e decidiu entrar em ação.
Os jovens amigos perceberam a preocupação: “Como se chama o livro?”, perguntaram. No preciso momento em que o senhor Liácio respondeu, o Maravilhas largou um miado bem alto num pulo assustado e na porta de madeira de carvalho soou um dlim dlom mais forte.
Mas…o que foi isto? Porque miou e pulou assim o Maravilhas? O que teria provocado aquele estranho ruído na campainha? Mas, afinal o que se passara aqui, na minha livraria? Todos os meus amigos livros estavam inquietos e intrigados. Alguns, muito assustados. Queríamos tanto uma resposta…